Acabei de ler este excelente livro à menos de uma hora,devo confessar que estou em estado de choque com o que esta brilhante escritora nos reserva para o final deste livro. Sinceramente ao longo desta leitura, passou-me tudo pela cabeça, tudo e mais alguma coisa, mas nunca, nem de perto nem de longe imaginei um final tão inesperado.
Li algures que quem tinha gostado deste livro ia adorar ler "A Rapariga no Comboio", eu fiz a leitura ao contrário, li primeiro este último que adorei e estava um pouco de pé atrás em relação ao livro "Em Parte Incerta", mas estava totalmente enganada. Ambos têm a meu ver bons, excelentes enredos para thrillers psicológicos, dai a comparação estipulada por alguns jornalistas.
O que interessa mesmo é que estou rendida ao enredo do livro, à escrita da autora Gillian Flynn, a forma como ela brinca com o leitor é brilhante. Através da sua narrativa ela conseguiu-me por a amar um e a depois odiar e vice-versa,isto em relação às duas personagens principais, Nick e Amy. As outras personagens todas, os pais de Amy, a irmã gémea de Nick, os polícias, os voluntários que tentam encontrar pistas, são todas elas personagens tão bem caracterizadas, que não são de modo algum fictícias, estas pessoas existem assim na vida real, e de certa forma foi isso que mais me fascinou na escrita de Gillian, ela trata de um tema que é comum, com personagens que são pessoas que existem no nosso mundo real.
Nick e Amy, casados há cinco anos, não têm um casamento perfeito, têm problemas como todos os casais.
Amy, é uma rapariga novaiorquina, que inspirou os seus pais, psicólogos infantis,a escrever a série de livros de sucesso da Amy exemplar.
Em todos os aniversários de casamento a Amy prepara uma "caça ao tesouro" para que Nick vá passando por lugares que são importantes ao longo do relacionamento deles, até chegar ao presente propriamente dito.
Nick teve de regressar a casa quando soube que a mãe estava numa fase terminal de cancro e o seu pai está eternado com Alzheimer, logo a sua irmã gémea Margo (Go) não consegue tratar de tudo sozinha. E dado que tanto Nick como Amy estão no desemprego, regressar a Michigan nem parece ser uma má ideia.
No quinto aniversário do casal, o seu segundo ano na terra natal de Nick, Amy desaparece misteriosamente, sem sinais de rapto e de que talvez nem esteja viva, e o culpado é sempre o marido.
O livro conta-nos a história a partir do dia do desaparecimento de Amy como uma análise ao relacionamento do casal.
Este livro está claramente dividido nas narrações e também em três partes. Um "capítulo" é narrado por Nick Dunne, o marido, o "capítulo" seguinte é narrado pela Amy Elliot Dunne. Nick narra o presente, o que vai acontecendo após o desaparecimento de Amy. Já sobre Amy o que nos é fornecido são anotações do seu diário, onde ela vai escrevendo sobre os seus acontecimentos mais marcantes, sobre o seu casamento, como conheceu o seu atual marido, relata-nos também aspectos da sua família e do quanto é diferente da Amy dos livros dos pais.
CONTÉM SPOILERS
Parte um:Rapaz Perde Rapariga
Nesta parte a narração de Amy, como já referi anteriormente,é feita por anotações do diário que nos guiam por momentos antes de ela conhecer Nick, depois de o conhecer e depois do seu casamento. Ela aqui demonstra ser uma mulher super liberal, que não se importa quando o marido sai com os amigos e não avisa, que não o prende em casa e que se ri dos outros maridos "macacos amestrados". O casamento começa perfeito e depois a narração de Amy faz com que o leitor se ponha no lugar dela. Como uma mulher tão inteligente se prendeu a um homem desse jeito?
Nick é um homem que não sabe expressar os seus sentimentos, desgastado por um casamento difícil, uma demissão em massa que o levou ao desemprego e a morte da sua amada mãe. Nick parece indiferente em frente das câmaras e ao público quanto ao desaparecimento da sua esposa. E isso é usado contra ele. Porque é difícil gostar de Nick, e a primeira parte é baseada basicamente nisto.
Durante todo o desaparecimento, investigação e buscas da desaparecida Amy, eu coloquei-me do lado dela. Enquanto Nick só mente à policia, começando com pequenas mentirinhas que pareciam ser para proteger a Amy, depois com mentiras bem maiores, a narração de Amy revela um casamento com um marido abusivo que estoura todo o seu dinheiro em coisas inúteis para preencher o vazio de uma vida sem emprego.
É depois de Nick contar-nos que traía Amy com uma aluna que que a situação dele fica realmente complicada, no nosso ponto de vista, ainda mais quando Amy conta o que sentiu ao descobrir: como Nick pode trair uma mulher tão incrível como a Amy? E então vem mais uma revelação Nick batia na Amy. Ela estava grávida. Ela comprou uma arma porque tinha medo dele. Ela estava a transformar-se numa pessoa que ela não queria ser, por causa dele.
Ao longo desta primeira parte eu fui-me questionando sobre os relatos de Amy no seu diário e todas as mentiras que vão sendo reveladas sobre Nick ao longo desta parte, sem sonhar sequer com o que vinha a seguir.
Na minha cabeça só vinham as frases ELE MATOU ELA. ELE NÃO MATOU ELA. Mas afinal o que aconteceu?
Parte dois:Rapaz encontra Rapariga
O ponto que encerra a primeira parte é inesperado e apesar de colocar em dúvida todas as coisas que Amy escreveu no seu diário, também nos leva a crer que Nick é o assassino e tudo pode ter acontecido, mas Nick ter sofrido uma espécie de lapso de memória. Realmente Nick pode não se lembrar que matou a sua mulher e ter matado, será possível?
É então que a história nos vai conduzindo à verdade dos factos e descobri que li metade do livro, e que essa metade era baseada em mentiras deslavadas, tanto por parte de Nick e, a maior surpresa, por parte de Amy também. O diário escrito por Amy ao longo de um ano, trás a visão dela sobre coisas que aconteceram mas que agora não têm mais a perspectiva da Amy exemplar mas sim da Amy real, que não é a mulher sincera que fingiu casar com Nick.
Vai ser nesta parte do livro que as coisas realmente acontecem, acabando por ser esta parte mais dinâmica que a primeira.
Com a verdade sobre Amy revelada, acompanhamos Nick a descobrir o segredo e a tentar preparar-se com o seu advogado, Tanner Bolt e a sua irmã, para uma defesa apropriada que consiga dizer ao mundo a verdade terrível: a sua esposa não é quem ela diz ser. Praticamente toda a ação de verdade acontece aqui, enquanto na primeira parte havia investigação, levantamento de dados por parte da polícia e da equipa de busca de Nick que se deslocava até aos lugares propostos pelas pistas da "caça ao tesouro" daquele ano.
Nesta parte Amy vai-nos contando o seu plano e toda a verdade, tudo vira numa corrida contra o tempo em que se percebe que Amy está a voltar e Nick está quase a conseguir provar que está certo. Então vem aquela sensação de borboletas na barriga em que eu como leitora entro na aflição de não saber quem chega primeiro.
Parte três:Rapaz recupera Rapariga (ou vice-versa)
Amy chega primeiro.
É na terceira parte que o livro explica e divide as opiniões.
A história tem de ser explicada, merece um ponto final aceitável, e quem melhor para nos fornecer isso do que Nick e Amy, juntos novamente?
Esta é a parte mais intensa do livro que li com compulsividade. Amy e Nick finalmente abrem o jogo um com o outro. Os dois conversam sobre o casamento no qual se encontram. Amy revela-se uma pessoa doentia, manipuladora, capaz de tudo, mas de algum modo ainda romântica até certo ponto. Ela ama Nick
O tempo que fiquei do lado daquela mulher racional, inteligente, disciplinada, confiante e cheia de poder e força dentro dela, por outro lado Nick era um ser humano cheio de defeitos mas também não merecia ser acusado de assassinato.
Amy é uma mulher doente mas que consegue sempre tudo o que quer com os seus esquemas demoníacos e um deles é manter Nick ao seu lado.
TERMINARAM OS SPOILERS
Conclui que a culpa de o casamento não funcionar era dos dois, é um pouco perturbador se expandirmos para uma analogia com os outros casamentos do nosso mundo real.
Será que conhecemos a pessoa que está deitada ao nosso lado? Nós temos a preocupação em conversar com ela, em contar os nossos medos e receios? Somos honestos com a pessoa com quem dividimos a nossa vida? Que tipo de segredos escondemos? Eles são perigosos ou são coisas que temos vergonha de admitir?
Um livro fascinante que me deixou arrebatada. Amei os personagens principais da mesma forma que os detestei em certos momentos. Não sei se é possível mas aconteceu comigo.
Excelente livro que recomendo vivamente!
EXCERTOS:
«O amor é a mutabilidade infinita do mundo; mentiras, ódio, e até mesmo homicídio, estão todos entretecidos nele; é o inevitável desabrochar dos seus opostos, uma rosa magnífica com leve perfume a sangue»
Tony Kushner, The Illusion
«O facto de os meus pais, dois psicólogos infantis, terem optado por esta forma pública e muito particular de comportamento passivo-agressivo para com a sua própria filha não era apenas lixado, mas também estúpido, esquisito e de certo modo hilariante. Que assim seja, então.» pág.42
«As pessoas dizem que os filhos de lares desfeitos têm vidas difícil, mas os filhos de casamentos de encantar também têm os seus desafios.» pág.43
«Ele faz o que lhe dizes para fazer porque não se importa o suficiente para discutir, creio eu. As tuas exigências mesquinhas só servem para que ele se sinta superior ou rancoroso, e um dia acabará na cama com uma colega de trabalho bonita e jovem, que não lhe pede nada, e tu vais ficar chocada.» pág.45
«Já não sei se somos realmente humanos nesta altura, aqueles de nós que são como a maior parte, e que cresceram com televisão e filmes e agora Internet. Se somos traídos, sabemos as palavras que devemos dizer; quando um ente querido morre, sabemos as palavras que devemos dizer.Se quisermos fazer o papel de conquistador, espertalhão ou idiota, sabemos as palavras que devemos dizer. Trabalhamos todos a partir do mesmo guião já muito batido.
É um período muito difícil para se ser uma pessoa, uma pessoa a sério e real, em vez de uma coleção de traços de personalidade selecionados a partir de uma máquina de venda automática de personagens.
E se todos estamos a representar, não pode existir uma alma gémea, porque não temos almas genuínas.
Tinha chegado a um ponto em que parecia que já nada importava, pois eu não sou uma pessoa a sério e os outros também não.
Teria feito o que fosse preciso para me sentir outra vez real.» pág.99
Boas leituras!